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Canudos, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e a criminologia científica do fim do século XIX


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Artigo publicado no dia 03 de junho de 2016, no 'Jornal da Cidade', Aracaju/SE.


Canudos, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e a criminologia científica do fim do século xix



Por Cleverton Silva.



Este estudo consiste em uma análise sobre a ciência criminológica do início do século XX, fortemente influenciada pelos postulados do médico baiano Nina Rodrigues (1862-1906) acerca dos fatores ambientais e sociais que levaram os sertanejos a se envolverem em torno do religioso Antônio Conselheiro no projeto da edificação de uma pequena povoação no árido interior baiano, o arraial de Canudos. Notabilizado pela sua contribuição à ciência por meio da medicina legal, e com base em observações por meio deste método científico, Nina Rodrigues concluiu que Conselheiro era um fanático insano que atraiu um grupo de seguidores também fanáticos. Estas ideias foram fortemente difundidas num clássico da nossa literatura: Os Sertões, de Euclides da Cunha.


Artur Ramos, que introduz a obra As coletividades anormais, editada pelo Senado Federal em 2006, reconhece em Nina Rodrigues autoridade para tratar sobre questões relativas às raças e culturas, e também o menciona como referência em criminologia e ciência penal. Cabe ressaltar, porém, que o critério adotado para o desenvolvimento desta ciência encontra correspondência em Cesare Lombroso, autor da obra O homem delinquente.


O primeiro recurso para que Nina Rodrigues justificasse a violência estatal que pôs fim a um grupo de sertanejos e ao seu líder, Antônio Conselheiro, consistiu primeiramente na análise do crânio do beato, separado de seu corpo no dia 6 de outubro de 1897, nos últimos dias de conflito. O próprio Euclides da Cunha, encerrando a obra Os Sertões, originalmente publicada em 1902, narra as circunstâncias do achado do corpo do beato. Recomenda-se a leitura desta obra imprescindível para o entendimento acerca dos primeiros anos da nossa República.


Nina Rodrigues e o seu assistente, o Dr. Sá Oliveira, procederam à análise do crânio em busca de anomalias que “ratificassem” a tese de que o Conselheiro era um louco que herdou geneticamente da família um incoerente instinto primitivo e selvagem, e que o ambiente hostil do sertão produziu os jagunços por ele influenciados, todos vivendo no atraso como uma sociedade bárbara incapaz de sequer compreender os benefícios da República.


Porém, após a análise do crânio, o médico concluiu que este critério não trouxe resposta satisfatória: “O crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência: é um crânio de mestiço onde se associam caracteres antropológicos de raças diferentes” (RODRIGUES, 2006, p. 89).


Constatado o fracasso do critério antropométrico, o médico baiano concentrou toda a fundamentação do seu diagnóstico no histórico do Conselheiro. Euclides da Cunha não cita Nina Rodrigues na segunda parte de Os Sertões, intitulada O Homem, mas faz um relevante apanhado da ciência criminal do médico baiano, na ementa e ao longo deste capítulo da obra.


Este histórico do Conselheiro pode, então, ser acompanhado tanto em Os Sertões quanto na obra do médico As Coletividades Anormais, nos trechos que dedica aos estudos sobre Canudos, o Conselheiro e seus seguidores, onde tenta convencer que Canudos resultou de um surto epidêmico de delírio coletivo. Rodrigues e Euclides da Cunha relatam na literatura médica e na clássica a mesma sequência de fatos, que Nina Rodrigues dividiu em três fases de psicose primitiva:


Primeira fase (até 1859) - Nascimento em Quixeramobim - CE, oriundo de família envolvida em conflitos; casamento prematuro com a prima e desentendimentos com a tia/sogra; passa por Sobral, Campo Grande e Ipu, onde exerce ofícios como caixeiro viajante e escrivão de juiz de paz; em Ipu sua esposa é «raptada», ou foge com?, por um policial; hospeda-se com parente em Paus Brancos, onde teria ferido um parente que o hospedou; desaparece.


Segunda fase (por volta de 1876) - Megalomania psicótica faz Antônio Maciel assumir o nome Antônio Conselheiro. Nesta fase prega contra o luxo e os maçons. Euclides da Cunha completa afirmando que aí começa a arrebanhar os primeiros fiéis, e vive de esmolas, privando-se de qualquer conforto material. Recebeu ordem de prisão, causando comoção e curiosidade. Peregrina os sertões de 1877 a 1887, fazendo benfeitorias nos cemitérios e igrejas dos povoados. Visitou também a nossa Itabaiana, em rápida passagem. Fazia pregações sobre a virada do século XIX para o XX.


Terceira fase (a partir da proclamação da República) - Constroem e se estabelecem em Canudos. Rodrigues acredita que o Conselheiro reage contra a nova forma de governo que separou a Igreja do Estado, secularizou o casamento e instituiu o casamento civil. Por sua condição atávica, Conselheiro era incapaz de aceitar os valores republicanos, e consequentemente ele convencia os seguidores com suas ideias.


Pode-se perceber, por esta linha de raciocínio, que Nina Rodrigues, assim como Lombroso, recorreu à antropometria e a fatores externos ao indivíduo estudado para ratificar as suas teses. Os critérios biológico e sociológico se complementavam para legitimar uma teoria baseada em premissas filosóficas distorcidas, como o evolucionismo, e também no momento político da jovem República brasileira.


O professor de história militar Sandro Teixeira Moita, em trabalho do ano de 2014, reflete sobre a repercussão do fenômeno Antônio Conselheiro no meio político regional e afirma que a capacidade do Conselheiro de influenciar e conduzir multidões chamava a atenção dos políticos locais, tementes de que o beato pudesse obter trabalhadores e votos por meio desta habilidade..


Explorando-se agora o plano teórico, não se pode negar que a criminologia científica ensaia uma busca por soluções de questões complexas, como por exemplo aquelas voltadas ao homem delinquente. Nesta corrente criminológica, o autor que parece ter feito melhor uso da sociologia foi Enrico Ferri (1856-1929), se considerada a sua contribuição para as soluções propostas para lidar com a punição justa aos criminosos: a função ressocializadora da prisão, os substitutivos penais e as medidas preventivas, por exemplos, que claramente influenciaram o Código Penal brasileiro de 1940.


Porém, mesmo os resultados de Ferri parecendo mais promissores, toda a criminologia científica italiana parte da premissa equivocada sobre a evolução do indivíduo e das sociedades humanas, transpondo indiscriminadamente a ideia da «sobrevivência do mais apto», desenvolvida por Herbert Spencer (1820-1903); e da teoria da seleção natural, desenvolvida por Thomas Malthus (1766-1834), e difundida por Charles Darwin (1809-1882).


Spencer foi um forte crítico da ideia de seleção natural de Darwin, mesmo ela sendo muito bem aceita no naturalismo para explicar a evolução das espécies. Porém, tal teoria lançou as bases para o «darwinismo social».


Assim como a teoria de Malthus foi voltada ao estudo da população humana, foi desenvolvido o darwinismo social, encampado de forma mais marcante por Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin, que promoveu a eugenia e desenvolveu a biometria em busca de exemplares humanos aperfeiçoadores da raça. Críticos de Galton afirmam que ele não levou em consideração que o estudo de Darwin era meramente biológico, e não de cunho sociopolítico, denunciam ainda que os estudos de Galton e de outros de sua linha serviram a ideais racistas e imperialistas (INDRIUNAS, 2013).


O darwinismo social parece ter afetado a criminologia científica europeia e brasileira da mesma forma que atribuiu o poder de persuasão do Conselheiro em relação aos sertanejos que o acompanharam em seu suposto delírio. A utilidade deste método se deu para fins políticos das oligarquias locais e do Presidente Prudente de Morais (BARTELT, 2014).


Recapitulando, o legado do médico baiano foi amplificado e eternizado na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, que sintetizou as premissas lombrosianas na ideia de que o Conselheiro seria um gnóstico bronco, que os jagunços e os nordestinos seriam uma sub-raça bárbara, espécies de Hércules-Quasímodo.


O que se pode concluir é que o temor dos políticos por Antônio Conselheiro era o terror pelo desconhecido, ameaçador do status quo. O atavismo atribuído ao beato que se traduziu em simpatia pela ultrapassada Monarquia nada mais foi do que uma luta da classe política da nascente República pela manutenção do poder.


Não foi possível neste trabalho relacionar o estudo de Nina Rodrigues à influência direta dos políticos interessados no fim de Canudos, mas se pode notar que reduzir os membros desta comunidade à condição de um grupo de fanáticos foi muito conveniente para os seus inimigos, a elite política da época.


Cabe salientar, por fim, que o tempo, este «senhor do sarcasmo e da ironia», mostra-nos que em agosto de 1909 caiu morto Euclides da Cunha, num duelo em passional defesa de sua honra, ferida pela traição do seu rival Dilermando de Assis, militar 20 anos mais jovem, campeão de tiro e amante de Anna Emília Cunha, esposa de Euclides. Não seria esta uma forma bastante atávica de morrer em pleno século XX?


REFERÊNCIAS


BARTELT, Dawid D. A mídia em campanha.. In.: Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 10, nº 111, dezembro de 2014.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2003.

INDRIUNAS, Alexandre. Evolucionismo – de Lamarck e Darwin aos dias de hoje: influências e querelas. Disponível em:http://ciencia.hsw.uol.com.br/evolucionismo4.htm, acesso em: 21/8/2013, 20:19.

MELO, Alice; FONTELLA, Angélica. Relatos de um desastre anunciado. In.: Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 10, nº 111, dezembro de 2014.

MOITA, Sandro T. Todos perdemos. In.: Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 10, nº 111, dezembro de 2014.

O positivismo e a criminologia científica. S/l: s/ed., s/ano.

RODRIGUES, Nina. As coletividades anormais. Brasília: Senado Federal, 2006.

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