top of page

A SENTENÇA QUE CONDENOU TIRADENTES


Arquivo publicado no dia 28 de abril de 2016, no 'Jornal da Cidade' - Aracaju/Se

Link: http://www.jornaldacidade.net/noticia-leitura/76/98033/a-sentenca-que-condenou-tiradentes-uma-analise-a-luz-do-pensamento-de-cesare-beccaria.html#.WEs8MPkrLIU

A SENTENÇA QUE CONDENOU TIRADENTES[1]: UMA ANÁLISE À LUZ DO PENSAMENTO DE CESARE BECCARIA


Cleverton Costa Silva[2]

Lívia Lemos Falcão de Almeida[3]


Este trabalho tem como objetivo analisar fatos relatados num dos mais marcantes momentos da história do direito no Brasil: o julgamento e a execução do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, mártir da Inconfidência Mineira executado no dia 21 de abril de 1792, três dias após a sua sentença. No Acórdão aqui analisado constam também as condenações de seus companheiros inconfidentes.

Tal análise tem por parâmetro e guia a obra Dos Delitos e das Penas[4], do milanês Cesare de Bonesana (1738-1794), Marquês de Beccaria, que em 1763 a inicia, onde são caros o idealismo e o humanismo sintetizados pela ideia do Contrato Social difundida por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que consiste no sacrifício de partes das liberdades de cada membro das sociedades em favor do Soberano, que como depositário destas parcelas de liberdade distribuirá a justiça e oferecerá a segurança e a prosperidade dos seus súditos. Com base na ideia contratualista, Beccaria fundamenta a origem do direito de punir.

Pode-se questionar, porém, como podem se relacionar a escrita de uma obra essencial no velho continente e tão conturbado conflito político na então colônia portuguesa, o Brasil? A resposta é que sim, contrastando-se as impiedosas penas contra os inconfidentes das Minas Gerais, em especial Tiradentes, com as avançadas ideias que até hoje influenciam os ordenamentos jurídicos em todo o mundo, inclusive no Brasil.

A sentença do caso inicialmente narra alegados fatos que envolvem 29 réus e embasam a acusação de conspiração visando ao crime de Lesa-Majestade. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi tido como o líder, Alferes da Cavalaria da Capitania de Minas que ao longo dos anos de 1788 e 1789 se dedicou a difundir ideais libertários em Vila Rica, Varginha e São João de El-Rei. Em sua luta, os inconfidentes desafiavam as derramas. E ameaçavam também a felicidade e a paz do povo.

Em sua jornada pelas vilas mineiras, Tiradentes foi ganhando apoio, arregimentando pessoas como José Alves Maciel, José Aires Gomes, o Padre Manoel Rodrigues da Costa, o Tenente Coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, o Coronel Ignácio José de Alvarenga, o Tenente Coronel Domingos de Abreu Vieira, o Padre José da Silva de Oliveira Rolim, o delator Joaquim Silvério dos Reis, Tomaz Antônio Gonzaga, entre outros.

A leitura do Acórdão que condena os inconfidentes não poupa os réus em termos de ofensas. Os réus são para os juízes: detestáveis, traidores, sediciosos, atrevidos, falsos, odiosos, dissimilados, dentre outros maus predicados. Tais comentários já evidenciam as intenções dos juízes em considerar a todos ou quase todos culpados.

As penas aplicadas foram diversas. Nove réus foram absolvidos, embora dois deles já tivessem falecido no cárcere. Tiradentes e alguns companheiros foram condenados à forca, à infâmia até a geração dos netos e a perda dos bens em benefício do fisco da Coroa; outros foram degredados para as colônias na África, uns permanente, outros provisoriamente, tendo apenas parte dos bens confiscados, casas destruídas e "salgadas", como se a infâmia se estendesse ao solo que antes ocupavam.

Todas as penas determinadas encontravam guarida no ordenamento jurídico português. A Professora Dra. da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Lisboa, Portugal, Teresa Luso Soares afirma que se buscava enfrentar os opositores por meio do terror e do sangue.

Em meados do século XVIII, contemporânea à obra de Beccaria, a Coroa Portuguesa determina nova pena pelo crime de Lesa-Majestade. "No ano de 1759, por Alvará de 17 de janeiro, determina-se que os culpados dos crimes de lesa-majestade de primeira cabeça sofram sempre a pena de confiscação e de reversão de bens à Coroa" (SOARES, 2016, p. 16)[5].

Não é intenção deste trabalho investigar as influências da obra Dos delitos e das penas na vida e no pensamento dos soberanos portugueses, se dela ouviram falar, se a ela voltaram alguma atenção ou não. O fato é que o processo contra Tiradentes e seus cúmplices correu no final do reinado de D. Maria I (1734-1816), que comandou Portugal entre 1777 e 1792, quando foi afastada do reinado por supostamente não estar em seu juízo perfeito. Esta informação se faz relevante apenas a título de contextualização, cabendo lembrar que é a partir deste ano que o filho D. João VI assume o trono[6].

O que se busca aqui é provar o quanto uma obra universal pode trazer através de reflexões racionais visando a soluções que distribuam a justiça aos casos concretos. Assim sendo, a obra de Beccaria será abordada de acordo com o que se lê do Acórdão dos julgadores dos réus inconfidentes, já que está evidenciado que as sentenças foram elaboradas em conformidade com o ordenamento jurídico em vigor.

Considerando-se inicialmente o Acórdão aqui estudado, chama a atenção ao longo dele a postura dos juízes signatários, que, como mencionado anteriormente, utilizaram-se de termos pejorativos contra os inconfidentes, que até o momento ainda eram réus.

Ou seja, no início do documento já se sabe que os réus são culpados pelos crimes imputados. O processo então não passa de mera formalidade. É como se o Magistrado fosse o Promotor, representante do Estado e do seu Soberano sob a Coroa portuguesa, ao mesmo tempo assume as vezes de juiz, decidindo a questão em evidente desfavor dos réus, desvirtuando as relações jurídico-processuais e o ideal de um julgamento justo.

Fundamentada no ordenamento jurídico português, a Coroa tipificou os atos dos inconfidentes como delitos de Lesa-Majestade, que Beccaria acredita terem sido classificados como grandes crimes, socialmente prejudiciais. O autor aponta ainda que o despotismo e a ignorância fizeram com que uma série de crimes de naturezas diferentes fossem atribuídos aos de lesa-majestade, para estes se aplicando dos castigos mais graves a faltas leves.

No tocante às penas determinadas, notam-se consideráveis graus de proporção pelo mesmo crime de lesa-majestade, ferindo o princípio da proporcionalidade das penas de acordo com os delitos. O Acórdão não deixa suficientemente claras as respectivas participações dos inconfidentes. Um grupo de 19 réus, no qual se inclui Tiradentes, recebeu as penas mais graves: morte na forca e exposição pública de seus restos mortais, infâmia a si e a respectivos filhos e netos, destruição de seus lares e terras e reversão de seus bens ao Fisco e à Câmara Real.

Para a Coroa, a estes réus não basta uma pena, mas uma série delas, todas tratadas por Beccaria. A morte é o espetáculo do suplício final, abominada pelo autor, que considera esta pena inútil e desnecessária, incapaz de frear outros ímpetos. Para quem assiste às execuções, este espetáculo traz um misto de indignação e piedade.

A infâmia era no século XVII pena que excedia a pessoa condenada, levando desgraça às famílias, o que hoje no Brasil é constitucionalmente vedado em seu artigo 5º, XLV[7]. "A infâmia é uma marca de desaprovação pública, que retira do culpado a consideração, a confiança que a sociedade depositava nele e essa espécie de irmandade que une os cidadãos de uma mesma nação" (BECCARIA, 2014, p. 55).

Um dos últimos temas da obra de Beccaria trata da sanção pecuniária contra quem cometia delito. "Os delitos dos súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio... O magistrado, que devia apurar a verdade com espírito imparcial, não era senão o advogado do fisco..." (BECCARIA, 2014, p. 92). Este trecho sintetiza o § XL Do espírito do fisco.

A lógica da sanção pecuniária e da confiscação de bens se fizeram presentes como punições aos inconfidentes, exceto aos réus Francisco José de Melo e Manoel Joaquim de Sá Pinto do Rego Fontes, ambos falecidos em pleno cárcere e inocentados. Não couberam estas sanções também contra Manoel da Costa Capanema, Faustino Soares de Araújo, João Francisco dos Santos, o escravo Alexandre, o Padre José da Silva de Oliveira Rolim, Manoel José de Miranda e Domingos Fernandes. Porém, não ficaram isentos de arcarem também com as custas processuais.

Não bastando a morte, a destruição dos seus respectivos lares e a infâmia contra os inconfidentes condenados e contra seus parentes, o Estado português ainda condenou ao confisco dos bens por eles acumulados, determinando a proporção dos valores de acordo com o maior envolvimento na conspiração.

Foram condenados a sofrer o total confisco dos bens em benefício do Fisco e da Câmara Real: Tiradentes, Francisco de Paula Freire de Andrade, José Alves Maciel, Ignácio de José de Alvarenga, Domingos de Abreu Vieira, Francisco Antonio de Oliveira Lopez, Luiz Vás de Toledo Piza. Foram condenados a confisco total dos bens também: Salvador Carvalho de Amaral Gurel, José de Resende Costa Pae, José de Resende Costa Filho, Domingos Vidal Barbosa e Cláudio Manoel da Costa, também morto no cárcere.

A confisco de metade dos bens em benefício do Fisco e da Câmara Real foram condenados: Thomás Antônio Gonzaga, Vicente Vieira da Morta, José Aires Gomes, João da Costa Rodrigues, Victoriano Gonçalves Veloso e Antonio de Oliveira Lopes. Foi condenado a confisco da terça parte dos bens o inconfidente João Dias da Morta.

Ratifica-se aqui o papel dos juízes em sua sanha por acumular bens para a Coroa, na função denunciada por Beccaria de advogados do Fisco. Cabe observar que o escritor milanês aponta o confisco, prisão ou escravidão como punições justas diante de situações como o contrabando. E que, advogando pela proporcionalidade das penas de acordo com as gravidades dos delitos, Beccaria nos leva a crer que a aplicação a este caso seria descabida.

Assim, nota-se que o exercício da leitura do Acórdão que condena os inconfidentes pelo crime de Lesa-Majestade chama a atenção para o rigor com o qual os magistrados da Coroa Portuguesa poderiam utilizar para punir as pessoas da Metrópole e das suas Colônias. No século XVIII eram meros ideais positivo-iluministas: a humanização das penas e as garantias processuais como a imparcialidade do juiz, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência e outros princípios jurídicos hoje reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro através da Constituição Federal de 1988.

Cabe aqui, a título de esclarecimento, frisar que a análise está restrita ao Acórdão, mas que estender esta análise a alguns fatos se fez necessário para fins de contextualização da peça processual ao seu contexto no Brasil de fins do século XVIII. Assim sendo, frise-se que apesar da condenação a quase todos os réus, "Na Inconfidência Mineira, somente Tiradentes foi condenado à pena última (que consistia em ser enforcado e esquartejado) por crime de lesa-majestade.[8]". Os demais réus tiveram as suas penas revertidas ao degredo pela Regente Maria I, antecessora de D. João VI no trono[9].

Diante de tudo o que foi apresentado, percebe-se que, embora Beccaria, no plano objetivo, ofereça elementos para que se possa repudiar boa parte dos flagrantes excessos e injustiças contra os inconfidentes, em especial contra Tiradentes, pode-se perceber que as rigorosas normas do Estado português constituíram fundamentos sólidos para as fixações das sentenças, naqueles tempos de intensa luta pela conquista dos direitos fundamentais.




[1] TRISTÃO, Adalto D. A sentença de Tiradentes. Disponível em: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=612, acesso em 7 abr. 2016.


[2] Bacharelando do 8º Período do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe - UFS.


[3] Mestra em Direito Internacional pela Universidade Complutense de Madrid. Professora Substituta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe - DDI-UFS.


[4] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. - 7ª ed. - Torrieri Guimarães (trad.). Sumaré: Martin Claret, 2014.


[5] SOARES, Tereza L. O crime de Lesa-Majestade humana na legislação portuguesa. Disponível em: <http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/5045/o_crime_lesa_majestade.pdf?sequence=1>, acesso em 4 abr. 2016.


[6] GONÇALVES, Adelto. D. Maria I: louca, piedosa ou uma incógnita? Disponível em: <http://acervo.revistabula.com/posts/livros/d.maria-i-louca-piedosa-ou-uma-incognita->, acesso em 5 abr. 2016.


[7] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. In: Vade Mecum compacto – 13ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.


[8] DAZZI, Camila. A imagem da capa. Disponível em <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/imagem-da-capa-1>, acesso em 7 abr. 2016.


[9] CAVALCANTE, Rivaldo. Tiradentes. Disponível em: <http://www.velhosamigos.com.br/DatasEspeciais/diatiradentes1.html>, acesso em 7 abr. 2016.

Posts Destacados 
Posts Recentes 
Siga
  • Facebook Long Shadow
  • Twitter Long Shadow
  • YouTube Long Shadow
  • Instagram Long Shadow
Meus Blogs Favoritos
Procure por Tags
Nenhum tag.
bottom of page